11 abril 2012

Um Outro Modelo de Humanidade

É curioso que seja precisamente no momento de instabilidade económica e social que vivemos, que as Nações Unidas chamem a atenção para a necessidade de encontrar um indicador de sucesso de um país diferente do PIB (Produto Interno Bruto). Já há décadas atrás, em 1972, surgiu no Butão o conceito de FIB (Felicidade Interna Bruta), elaborado pelo rei desse país, em colaboração com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Este conceito integrava nove indicadores para medir a qualidade de vida, que compreendiam o bem estar psicológico, a saúde, forma de governar, o padrão de vida, a educação, a cultura,o uso do tempo, a vitalidade comunitária e a resiliência ecológica.
Os estudos mais recentes comprovam que os países mais ricos não são necessariamente aqueles onde as pessoas são mais felizes. Ban Ki-moon, o secretário-geral das Nações Unidas declarou que o bem-estar social, económico e ambiental são indivisíveis. O relatório Felicidade Mundial para a Conferência das Nações Unidas sobre Felicidade, elaborado pelo Instituto da Terra da Universidade da Columbia, sublinha o seguinte: «Os indivíduos importam-se em grande parte com o seu prazer especialmente através do seu consumo. (…) Cada vez mais entendemos que precisamos de um modelo de humanidade muito diferente.»
Que modelo diferente de humanidade será esse? Poderemos entender que obtemos satisfação quando as nossas necessidades se encontram satisfeitas. A questão fundamental será precisamente a redefinição das necessidades. No séc. XX assistimos a um avanço tecnológico surpreendente e seria de esperar que toda essa tecnologia permitisse maior facilidade e qualidade na produção dos bens que consumimos, proporcionando-nos mais tempo livre para o lazer. Não foi assim. Em vez disso, estimulou-se o consumo para escoar uma quantidade e variedade crescente de produtos, uns necessários outros nem por isso, mas que acabam por constituir, todos juntos, uma carga orçamental pesada, que nos obriga a trabalhar mais para a poder satisfazer.
Muitos dos produtos que adquirimos parecem satisfazer desejos que deixam de o ser depois de o produto estar na nossa posse. Como exemplo, está aquele sonho de ter o carro X da marca Y, que nos proporciona imenso prazer quando conseguimos comprar, tanto que chega a dar-nos uma sensação de vitória pessoal. Só que pouco tempo depois de vencer esse desafio já precisamos de outro, até porque a marca Y acabou de lançar o modelo K que tem uma performance muito superior e é lá que o nosso desejo se fixa agora. Poderíamos ponderar se é o bem em si que nos atrai ou se é o desafio de ser capaz de o obter que fala mais forte.
Há depois aqueles produtos maravilhosos, com uma variedade de funcionalidades práticas que os tornam irresistíveis, cuja posse nos inclui no grupo restrito de privilegiados que os pode adquirir. Afinal até resolvem uma série de problemas, embora possa não ser oportuno, bem vistas as coisas merecemos. É como aquele anel magnífico que estava na montra da ourivesaria, que mesmo sendo caro pode ser pago por várias vezes, de forma suave. Enfim, dá logo um aspecto diferente a quem o usa, não é para qualquer um.
Estes bens de que nos rodeamos ajudam a afirmarmo-nos perante os outros, valorizando-nos aos seus olhos. Condicionam a consideração, respeito e atenção que deles recebemos às primeiras impressões. Percebendo esta mecânica, compreendemos de repente que, à medida que alguém nos vai conhecendo melhor, estes detalhes exteriores vão perdendo importância. O julgamento do outro pode até mudar radicalmente através da forma como nos relacionamos e das características interiores que o vamos deixando perceber. No entanto, esse julgamento fica por conta do outro e o sujeito deixa de o poder filtrar na totalidade. Será por isso que os relacionamentos que estabelecemos tendem a ser cada vez mais fugazes e inconsequentes? É sem dúvida mais fácil parecer do que ser. Também é mais confortável sermos nós próprios a escolher a imagem que queremos que tenham de nós, mas só o podemos fazer enquanto o relacionamento com o outro se mantiver superficial e formos preenchendo o vazio do conhecimento interior pelos sinais que os bens exteriores evidenciam.
Se olharmos bem fundo para a forma como vivemos actualmente, em especial nas grandes cidades, a palavra isolamento pode ser a que melhor nos define: temo-nos afastado progressivamente da natureza, dos outros e mesmo de nós próprios; até porque deixámos de ter tempo. O tempo é hoje uma palavra-chave, sobretudo pela sua ausência. Não temos tempo para intervir na comunidade em que vivemos, dando o nosso contributo para o bem comum; falta tempo para estar com os amigos e a família, para desfrutar do habitat em que vivemos e ainda para cuidar de nós. A velocidade a que vivemos impede as pausas necessárias para equacionarmos o nosso comportamento, a forma como lidamos com as nossas emoções e como compreendemos o mundo. É sempre mais fácil recorrer a uns anestesiantes, eventualmente validados por receita médica, de efeito rápido e eficaz.
Por outro lado, confundimos prazer com felicidade. Enquanto a última é um estado duradouro, que brota de dentro do indivíduo, o prazer é fugaz e depende de estímulos externos. No entanto é fácil e enquanto nos mantemos ocupados com a satisfação de um após outro, vamo-nos entretendo com as migalhas de um bolo muito mais saboroso de que não nos conseguimos aperceber.
A humanidade privilegia hoje o fácil, o rápido, o barato, o aparente e a quantidade em detrimento da qualidade. Voltamos ao início: que outro modelo de humanidade poderíamos ter?
Começaria por ter que recuperar o respeito e a ligação com o seu habitat natural, reconciliando-se com a natureza e com os animais que consigo a partilham. Teria que regressar a um modelo social de pequenas comunidades em que cada indivíduo tem a sua função específica e é reconhecido por quem é, pelo papel que desempenha e não pelo que aparenta. Teria que viver com mais simplicidade, com menor quantidade de bens e utensílios, eventualmente com alto índice de sofisticação na sua funcionalidade, que preenchessem necessidades reais e proporcionassem tempo livre para descanso e lazer. Teria que ser governada segundo um modelo que servisse os seres humanos em vez de se servir deles como índices de consumo, força de trabalho e capacidade de produção. Seria preciso que o dinheiro deixasse de ser o valor mais importante e que esse fosse dado ao homem e à natureza.
Muitos outros aspectos deveriam também ser considerados num estudo mais alargado. Esta é uma reflexão pessoal no meio de muitas outras que vão surgindo por todo o lado. Vai crescendo o desejo de mudar os padrões de vida. Quem sabe a próxima conferência das Nações Unidas sobre a Felicidade não acelera esse processo?
Lina Chambel