01 fevereiro 2013

Circunstância e Carácter


Temo que neste momento da história a Humanidade tenha chegado ao ponto de valorizar a circunstância em detrimento do carácter, a reacção em detrimento da acção. Com o crescimento da individualização, foi-se perdendo a consciência social, o grupo foi sendo cada vez mais desvalorizado, a ponto de assistirmos hoje a uma deteriorização assustadora das relações humanas. O indivíduo ficou sozinho, rodeado pela inércia de uma massa grande demais para aceitar a sua influência. Não sabe quem é nem que sentido dar à sua vida; reage às circunstâncias sucessivas que se lhe apresentam sem um rumo a que possa chamar seu e sem reflectir nas suas próprias acções. Nunca como agora se falou tanto em liberdade e provavelmente o Homem nunca teve tão pouca como agora. Por onde anda a metafísica, capaz de preencher este vazio existencial? Está por todo o lado e ao alcance de qualquer um que a queira encontrar, bastando para tal que haja a capacidade para acreditar em algo e em si mesmo.

Foi Ortega y Gasset que formulou a questão de forma brilhante através da frase: «Eu sou eu e a minha circunstância». Para logo de seguida acrescentar: «Se não a salvo a ela (circunstância), não me salvo a mim». Ou seja, se o poder for atribuído à circunstância, fica o indivíduo à deriva perdido. No fundo, é mais simples do que parece à primeira vista. As circunstâncias são um fluxo contínuo e extremamente heterogéneo de experiências  que a vida nos apresenta. Através da forma como cada um reage, vai moldando o seu carácter (algo mais sólido do que a personalidade, já que esta adquire nuances diferentes a todo o momento). O carácter pode conquistar a firmeza e segurança suficientes que lhe permitam criar as circunstâncias que deseja e moldar a realidade à sua medida. É no momento em que o indivíduo deixa de ser reactivo e passa à acção que ganha verdadeira liberdade. Até aí não tem o poder de escolher, não enquanto se mantiver à mercê das circunstâncias.

São uma desculpa fácil, as circunstâncias, sobretudo para a mediocridade. É comum ouvir-se: «Foram as circunstâncias... se tivessem sido outras, tudo teria corrido de forma diferente.» Um ser maduro e culto assume a responsabilidade das suas decisões, porque sabe que tem tantas para escolher quantas as cores que um pintor conseguir ter na sua paleta. Uns mais, outros menos, até porque a arte de misturar as cores requer paciência, treino e perícia; ou seja, conhecimento.

Nem sempre a filosofia ocidental e a oriental estão de acordo, mas Ortega y Gasset e o Yôga Antigo concordam neste ponto. Diz Ortega: «Paz e cultura têm um valor recíproco no meu vocabulário: paz é a postura da alma culta e cultura é o cultivo». O Yôga Antigo aponta o autoconhecimento conseguido através de técnicas práticas como caminho. Liberdade, responsabilidade, capacidade de interacção do indivíduo com o mundo que o rodeia são também aspectos comuns e intimamente relacionados com a formação e refinamento do indivíduo.

Como forma de recomendar a obra A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset, de onde foram retiradas as citações anteriores, deixo a transcrição de dois trechos sobre o tema:

«A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.»
« É, pois, falso dizer que na vida «decidem as circunstâncias». Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
Lina Chambel