21 setembro 2015

Generosidade

O neurocientista português António Damásio identificou o córtex pré-frontal como a zona do cérebro responsável pela generosidade. Num estudo publicado na revista “Biological Psychiatry”, a psicóloga americana Sarina Saturn, da Universidade do Oregon, verificou que o sistema nervoso simpático e parassimpático são activados perante imagens de actos de compaixão. Testemunhar um acto altruísta desperta no indivíduo o impulso da generosidade e gera empatia. O neurocirurgião João Lobo Antunes concorda e em entrevista ao jornal Expresso (04/06/2015) diz que “sim, a bondade é contagiosa – o problema é haver tanta gente vacinada contra ela...”.

Que vacina poderosa é essa, que impede a manifestação de um impulso natural? Os estudos de Gregory Berns, professor de ciências comportamentais na Universidade de Emory, levam-no a afirmar que o impulso altruísta para cooperar nos está gravado biologicamente. Mais longe ainda vai Dacher Keltner, professor de psicologia na Universidade da Califórnia, que descobriu que outros aspectos físicos seguem uma programação de bem estar durante actos de generosidade: o ritmo cardíaco desacelera, o sistema nervoso autónomo descontrai e a produção de oxitocina, a hormona do amor, aumenta. Tudo se conjuga para maximizar o bem estar e prazer interiores durante o exercício da generosidade e, nesse sentido, é algo que melhora a satisfação do indivíduo, da qual depende a qualidade do sistema imunitário e a condição geral de saúde.

Que vacina poderosa é essa, que impede a manifestação de um impulso natural? A generosidade não só é estimulada no praticante de Yôga, como no caso do Yôga Antigo (Swásthya Yôga) ela é tão valorizada, que lhe é consagrada uma das oito partes da prática ortodoxa (a segunda, o pújá). Há uma eternidade que os mestres de Yôga sabem que a expansão da consciência depende da capacidade de dar. A entrega espontânea e sentida dos melhores sentimentos consagra o espaço em que a prática decorre, liga aqueles que praticam juntos numa mesma vibração altruísta, une-os a toda a humanidade e ao cosmos através da dádiva. O facto de ser executada com atenção plena, eleva os níveis de frequência eléctrica do cérebro e aumenta determinadas amplitudes de banda (estes aspectos foram já medidos por EEG, se bem que o praticante de Yôga adiantado conheça tão bem os seus efeitos, que não precise de os ver confirmados pela ciência). Na sequência das experiências efectuadas com monges budistas em meditação compassiva, orientados pelo rinpoche doutorado em genética molecular Matthieu Ricard, ficou claro que por força da diminuição de actividade nos lobos parietais (responsáveis pela distinção do “eu” e do “não eu”), a concepção da individualidade se esfuma e a de unidade ganha substância. Este aspecto ocorre não só durante a prática de meditação, como também fora dela, caso se trate de um praticante treinado. Assim sendo, quanto mais se pratica a generosidade, menor o egoísmo.

Que vacina poderosa é essa, que impede a manifestação de um impulso natural? O egoísmo, que tantos afirmam ser característica inata do ser humano, isola-o e impede-o de desfrutar do bem estar físico que o altruísmo desencadeia. É possivelmente sintoma de uma qualquer patologia que impede o contágio da bondade na raça humana, tal como a conhecemos hoje. Um condicionamento exterior à sua natureza, algo aprendido de fora, um padrão tantas vezes reiterado que se tornou seu sem nunca ter sido? Que vacina poderosa é essa?


Lina Chambel

17 setembro 2015

O Individual e o Colectivo

Hoje, mais do que nunca, valorizamos a individualidade. O elevado nível de competitividade em que vivemos exige que cada um marque a sua diferença, aprimore as suas mais valias e conquiste um lugar para si. É uma afirmação exterior, que se vai construindo em paralelo com a imagem que pretendemos que os outros tenham de nós.

O grupo ou grupos em que nos inserimos, são um factor preponderante nessa construção. Escolhemo-los pela afinidade. Procuramos gostos comuns, formas de estar semelhantes, ideias parecidas, comportamentos idênticos. No fundo, reforçamos a nossa identidade, já que a bitola somos nós mesmos. Validamo-nos através dos outros, provando que estamos certos nas opções. Diz o ditado popular, “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. Há uma boa dose de conforto e segurança no contacto com o “outro” igual ao “eu”, para além de que ele preenche a necessidade de integração.

No entanto, é fora da zona de conforto que a evolução se dá. Muito do conhecimento de nós próprios advém do contacto com os outros e não avança muito se ficar limitado preferencialmente à constante recriação do “eu”. Na diferença, podemos ser postos em causa, equacionar perspectivas e escolhas, enquanto na semelhança tendemos a reiterar continuamente os mesmos padrões.  

Por outro lado, preferindo um determinado grupo de pessoas, separamo-nos das outras. Se olharmos bem, há muito mais exclusão do que inclusão nos nossos relacionamentos, mais separação do que união e essa é provavelmente uma das maiores causas de sofrimento e violência no mundo ocidental dos nossos dias.

Na nossa cultura, consideramos este mecanismo natural. A um nível aparente, poderia ser, não fosse a capacidade inata que todos temos de nos “sincronizar” uns com os outros. Quando dois seres humanos se encontram, ambos geram um espaço comum, com uma identidade própria, onde nenhum deles é sujeito e objecto e onde ambos se ampliam através da ressonância da humanidade comum. A empatia brota naturalmente, a menos que os indivíduos coloquem barreiras capazes de a bloquear. É muito mais o que nos une do que o que nos separa. A um nível profundo, a comunhão com outro ser humano, independentemente das aparentes semelhanças ou diferenças, permite a vivência das verdadeiras qualidades de cada um, livre de preconceito. Só quando conseguimos deixar de lado os julgamentos, podemos apreciar em pleno o outro e a sua singularidade única.


Afinal, é perda de tempo querer provar ao mundo o quanto valemos, é inglório refugiarmo-nos na semelhança do grupo: cada um de nós é peça inédita na engrenagem gigante da humanidade e essa é só uma. Encontra-se essencialmente  ligada nos níveis inferiores e superiores da consciência, com vínculos indestrutíveis, por muito que queiramos fazer valer as diferenças. É tempo de mudar de perspectiva e ajustar o foco. Na conexão de todos, cada um é único.

02 janeiro 2015

A Voz Interior

O mundo de fora entra constantemente pelas janelas dos sentidos. É por meio destes que vamos construindo o conhecimento que temos do mundo, das coisas e das pessoas. Há algo mais, no entanto. Impressões internas, por vezes fugazes, que não sabemos muitas vezes o que são exactamente, nem como lidar com elas. São pequenos nadas, sensações, sentimentos,  aparentes coincidências, algo que se vê, ouve ou lê e fica a ressoar. Não provêm da mente, embora deva ser esta a equacioná-los em seguida, com abertura genuína para que os possa observar com clareza. São expressões da voz interior, ou interferências da inteligência superior, se assim preferir.

Tudo em nós está ligado e se interpenetra. Por isso o corpo pode manifestar essas interferências da inteligência superior sob a forma de sensações físicas, por exemplo uma pressão no peito, um aperto no estômago, uma sensação de contracção ou por outro lado de expansão, leveza, ou outras. Podem ocorrer sentimentos inexplicáveis de alegria, por exemplo ao olhar pela primeira vez para alguém que se acabou de conhecer, ou um impulso inexplicável. Algo pode também surgir na sua mente sem que o tenha pensado, eventualmente desenquadrado e fora de propósito, como um flash.

No entanto, há impressões que surgem de fora, mas que ressoam em nós incompreensivelmente. Podem aparecer num livro oferecido por alguém, um video que foi recomendado, coincidências em que é difícil não reparar, uma  imagem que desperta particularmente a atenção ao passar na rua, um número em que se repara e se repete, uma palavra que surge insistentemente, ou uma cor, uma forma, uma música que não sai da cabeça…

A vida corre à milésima de segundo e para reparar nestas impressões subtis é necessária uma pausa para as observar e registar. Estar descontraído ajuda, mas o que faz a diferença é mesmo estar presente no momento e prestar atenção tanto ao exterior como ao interior, em diálogo contínuo.

Não serão de esperar conceitos completos, estas informações são fragmentadas. Por vezes, peças de um puzzle que se vai formando aos poucos. Necessitam de confiança para que continuem a manifestar-se, abertura para que o julgamento não as descarte prematuramente e se percam. Constituem a expressão da voz interior, que pode não parecer coerente, ser incompreensível até, mas que em determinado momento pode fazer todo o sentido. Dar-lhes espaço é uma procura de alinhamento com a verdade de si mesmo. É estreitar laços com o que é genuinamente seu e a que pode dar expressão, de forma a materializar o contributo único do ser único que é, capaz de co-criar o mundo à sua volta.
Lina Chambel