Temo que neste
momento da história a Humanidade tenha chegado ao ponto de valorizar a
circunstância em detrimento do carácter, a reacção em detrimento da acção. Com
o crescimento da individualização, foi-se perdendo a consciência social, o
grupo foi sendo cada vez mais desvalorizado, a ponto de assistirmos hoje a uma
deteriorização assustadora das relações humanas. O indivíduo ficou sozinho,
rodeado pela inércia de uma massa grande demais para aceitar a sua influência.
Não sabe quem é nem que sentido dar à sua vida; reage às circunstâncias
sucessivas que se lhe apresentam sem um rumo a que possa chamar seu e sem
reflectir nas suas próprias acções. Nunca como agora se falou tanto em
liberdade e provavelmente o Homem nunca teve tão pouca como agora. Por onde
anda a metafísica, capaz de preencher este vazio existencial? Está por todo o
lado e ao alcance de qualquer um que a queira encontrar, bastando para tal que
haja a capacidade para acreditar em algo e em si mesmo.
Foi Ortega y
Gasset que formulou a questão de forma brilhante através da frase: «Eu sou eu e
a minha circunstância». Para logo de seguida acrescentar: «Se não a salvo a ela
(circunstância), não me salvo a mim». Ou seja, se o poder for atribuído à
circunstância, fica o indivíduo à deriva perdido. No fundo, é mais simples do
que parece à primeira vista. As circunstâncias são um fluxo contínuo e extremamente
heterogéneo de experiências que a vida
nos apresenta. Através da forma como cada um reage, vai moldando o seu carácter
(algo mais sólido do que a personalidade, já que esta adquire nuances
diferentes a todo o momento). O carácter pode conquistar a firmeza e segurança suficientes
que lhe permitam criar as circunstâncias que deseja e moldar a realidade à sua
medida. É no momento em que o indivíduo deixa de ser reactivo e passa à acção
que ganha verdadeira liberdade. Até aí não tem o poder de escolher, não
enquanto se mantiver à mercê das circunstâncias.
São uma
desculpa fácil, as circunstâncias, sobretudo para a mediocridade. É comum
ouvir-se: «Foram as circunstâncias... se tivessem sido outras, tudo teria corrido
de forma diferente.» Um ser maduro e culto assume a responsabilidade das suas
decisões, porque sabe que tem tantas para escolher quantas as cores que um
pintor conseguir ter na sua paleta. Uns mais, outros menos, até porque a arte
de misturar as cores requer paciência, treino e perícia; ou seja, conhecimento.
Nem sempre a
filosofia ocidental e a oriental estão de acordo, mas Ortega y Gasset e o Yôga
Antigo concordam neste ponto. Diz Ortega: «Paz e cultura têm um valor recíproco
no meu vocabulário: paz é a postura da alma culta e cultura é o cultivo». O
Yôga Antigo aponta o autoconhecimento conseguido através de técnicas práticas
como caminho. Liberdade, responsabilidade, capacidade de interacção do
indivíduo com o mundo que o rodeia são também aspectos comuns e intimamente
relacionados com a formação e refinamento do indivíduo.
Como forma
de recomendar a obra A Rebelião das
Massas, de Ortega y Gasset, de onde foram retiradas as citações anteriores,
deixo a transcrição de dois trechos sobre o tema:
«A vida, que é, antes
de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir
entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são
os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as
possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o
que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se,
imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O
nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.»
« É, pois, falso dizer que na vida «decidem as circunstâncias». Pelo
contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de
nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
Lina Chambel