14 março 2010

Fernando Pessoa sobre o autoconhecimento

Ele foi já há muito reconhecido como um dos maiores poetas portugueses de sempre, mas vendo bem, é ainda mais do isso. Além da arte suprema das palavras, Fernando Pessoa explorou em profundidade o conhecimento de si mesmo, tornando-se também pensador e filósofo.
Considero-o meu Mestre desde os tempos de adolescência (podemos ter vários, se forem de áreas diferentes) e é desde essa altura que há sempre uma das suas obras na minha mesa de cabeceira - é uma fonte de inspiração constante e desafiante. Hoje abri ao acaso o Livro do Desassossego, e apeteceu-me partilhar o que li:
«O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sensação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciência objectiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mundo, e a sua personalidade. Nada mais objectivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si. Sobre essas duas realidades requinta ele a sua ciência. É muito diferente já da ciência dos antigos científicos, que, longe de buscarem as leis da sua própria personalidade e a organização dos seus sonhos, procuravam as leis do «exterior» e a organização daquilo a que chamavam «Natureza».
(...)
«Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar.»
(...)
«Porque eu não só sou um sonhador, mas sou um sonhador exclusivamente. O hábito único de sonhar deu-me uma extraordinária nitidez de visão interior. Não só vejo com espantoso e às vezes perturbante relevo as figuras e os décors dos meus sonhos, mas com igual relevo vejo as minhas ideias abstractas, os meus sentimentos humanos - o que deles me resta, os meus secretos impulsos, as minhas atitudes psíquicas diante de mim próprio. Afirmo que as minhas próprias ideias abstractas, eu as vejo em mim, eu com uma interior visão real as vejo num espaço interno. E assim os seus meandros são-me visíveis nos seus mínimos.
Por isso conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda.»
(...)
«Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como é que as paisagens reais e as personagens da vida nos aparecem reveladas. Porque a visão do sonhador não é como a visão do que vê as coisas. No sonho, não há o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objecto que há na realidade. Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual.»
Platão já tinha afirmado que a realidade é uma ilusão de sombras. Colocou a verdadeira realidade para lá das nossas percepções sensoriais, provavelmente na dimensão do sonho aqui descrito por Fernando Pessoa. Platão concordaria também em que só o sonho é objectivo; só a visão interior (aquela que procuramos atingir no Yôga desenvolvendo a intuição) permite o acesso à verdadeira consciência de si e do mundo.
Com estas palavras, aprendi que preciso de me sonhar para me conhecer, mas elas sugerem muitas outras reflexões. Desafio-o a si, que está a ler este texto, a partilhar os pensamentos que ele lhe inspirou, deixando o seu comentário sobre o tema.
Pela minha parte, digo que se Fernando Pessoa se tivesse encontrado com o SwáSthya Yôga, teria também aprendido a dançar, tornando-se num digno discípulo de Shiva Natarája.
Lina Chambel

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